domingo, 7 de julho de 2013

Nós sempre teremos Marte

A noção de Marte como "planeta irmão" da Terra, dotado de desertos, rios e habitantes esbeltos, foi desmontada a partir dos anos 1960, quando naves mostraram quão inóspito era o astro. Imagens e amostras colhidas em missões recentes, entretanto, dão sopro à ideia de que ele pode ter sido habitável.
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Era uma vez dois planetas, novos na galáxia e inexperientes na vida. Como gêmeos fraternos, eles nasceram ao mesmo tempo, cerca de 4,5 bilhões de anos atrás, e assumiram mais ou menos a mesma forma. Ambos eram empolados com vulcões e riscados por cursos d'água; ambos giravam em volta da mesma estrela anã --suficientemente perto para serem aquecidos por ela, longe o bastante para não se verem reduzidos a cinzas.
O resto é pré-história. Na Terra, os vulcões encheram o ar de vapor d' água e dióxido de carbono. A superfície esfriou, e formou-se uma crosta sobre a qual se condensaram os oceanos. Em fontes de água quente e espiráculos submarinos, compostos carbônicos simples subiram, borbulhantes, para formar aminoácidos e peptídeos. As primeiras bactérias se deslocaram pelo lodo; depois, surgiram algas que absorveram a luz do sol e exalaram oxigênio. A esse episódio, os geólogos chamam de "Grande Evento de Oxigenação" --a transformação mais momentosa da história do planeta.
Em 1877, quando o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli desenhou o primeiro mapa detalhado de Marte, imaginou o planeta como um paraíso terrestre. Batizou uma região de Éden e outra de Elísio; ainda outras, em mapas posteriores, eram Arcádia e Utopia. Olhando através de seu telescópio, tinha vislumbrado o que lhe pareceram ser oceanos, continentes e canais de água.
Muitos de seus sucessores se fiaram na visão dele: quanto mais precisos seus telescópios, mais embaçada era sua visão. Enxergaram montanhas de gelo e rios de neve derretida, como escreve William Sheehan em seu livro "The Planet Mars: A History of Observation and Discovery", de 1996. Viram férteis oásis e um equador verdejante. Alguns até enxergaram a palavra "shajdai" --"todo-poderoso", em hebraico-- escrita sobre a superfície do planeta.
Quando finalmente a humanidade pôde pela primeira vez olhar para Marte em close-up, quase um século depois de Schiaparelli, o planeta já era visto quase como uma segunda e mais exótica Terra. Livros como "As Crônicas Marcianas", de Ray Bradbury, descreviam um lugar de estranha grandeza desértica, habitado por seres esbeltos e dourados dados a alucinações. E, embora estudos infravermelhos sugerissem que a superfície marciana continha 70 vezes menos água do que o mais seco deserto da Terra, biólogos ainda nutriam esperanças.
Em julho de 1965, a nave Mariner 4, da Nasa, passou ao largo do hemisfério Norte de Marte e enviou uma série de imagens à Terra. Eram registros granulados em preto e branco, mas que deixaram uma impressão clara. Onde ficavam Arcádia e Elísio havia uma imensidão deserta e desolada, marcada por crateras. Não parecia a Terra. Parecia a Lua.
Há 60 anos se busca vida em Marte; 40 naves já foram enviadas para lá, e nenhuma encontrou um único fóssil ou ser vivo. Quanto mais cuidadosamente olhamos, mais hostil parece o planeta: ressecado e congelado em quase todas as estações, atmosfera inerte e perigosamente fina, superfície erodida por ventos solares.
Hoje os geólogos acreditam que quando a Terra começou a respirar, 3 bilhões de anos atrás, Marte já sufocava havia 1 bilhão de anos. O ar tinha se rarefeito, e os rios, evaporado; tempestades de areia haviam se formado, e calotas de gelo, capturado o que restara da água. O "Grande Evento de Ressecação", como ele às vezes é chamado, é um mistério ainda maior do que a "Grande Evento de Oxigenação" da Terra. Sabemos apenas que um planeta viveu e o outro morreu.
Em 26 de novembro de 2011, a Nasa enviou o laboratório científico móvel mais sofisticado do mundo para explorar Marte: o jipe-robô Curiosity, construído ao longo de dez anos a um custo de US$ 2,5 bilhões. Os cientistas do projeto fizeram questão de evitar criar grandes expectativas: estavam apenas procurando locais que pudessem ter sido habitáveis em alguma época. Mas Marte, mesmo morto, pode trazer respostas a perguntas muito antigas sobre a vida: o que coloca suas engrenagens em movimento? Por que aqui, e não lá?
GUINDASTE
O centro de comando da missão marciana da Nasa fica no Laboratório de Propulsão a Jato (JPL), em Pasadena (Califórnia). Ali, a manhã de 4 de agosto de 2012 --"dia do pouso menos Um", como chamaram-no os engenheiros da Nasa começou com um briefing dado por alguns dos líderes do projeto. O pouso do jipe-robô em Marte estava previsto para dali a menos de 48 horas.
O sistema de orientação do Curiosity datava dos tempos do projeto Apollo; seu paraquedas supersônico vinha das missões Viking do final dos anos 1970. Mas o elemento que o distinguia --um sistema de pouso conhecido como Sky Crane (guindaste celeste)-- era novo em folha. Nem sequer tinha sido testado na Terra --a gravidade e a atmosfera marcianas só podiam ser simuladas por computador.
Nos oito meses e meio passados desde que a missão Curiosity tinha decolado de Cabo Canaveral (Flórida), ela tinha atravessado 566,5 milhões de quilômetros. A nave tinha quatro componentes principais: um foguete para erguê-la até o espaço; um estágio de cruzeiro para levá-la até Marte; uma cápsula de aterrissagem para deslizar pela atmosfera superior, e o guindaste celeste para pairar sobre a superfície e descer o jipe-robô até o chão. Os três primeiros eram bastante elegantes. Já o guindaste e o jipe, esdrúxulos.
O guindaste, com cabos saindo do ventre e propulsores de foguete a título de pernas, parecia uma aranha robótica. O jipe-robô era mais semelhante a um camelo, com chassi dotado de "joelhos" protuberantes e um pescoço comprido, com várias articulações, coroado por uma cabeça binocular. O jipe era movido por um gerador nuclear; portava um sem-fim de lasers, conchas, câmeras e garras.
O Sky Crane levava a assinatura de Adam Steltzner, líder da equipe de entrada, descida e pouso. Por acaso, o pouso em Marte coincidiu com outro projeto de longo prazo: sua mulher, Trisha, estava grávida de nove meses. Para ela, o timing era ruim. Mas a dupla novidade parecia ter dado ao marido energia extra.
Veridiana Scarpelli/Folhapress
Ilustração da artista Veridiana Scarpelli que representa a superfície marciana
Ilustração da artista Veridiana Scarpelli que representa a superfície marciana
O fato de ele estar no JPL já era em si um golpe de sorte. A primeira vez em que pensara seriamente em astronomia havia sido em 1984, aos 21 anos, quando vivia em Mill Valley (Califórnia) e tocava baixo numa banda de rock. Abandonara a faculdade e era playboy de vilarejo, gerente assistente de um mercado orgânico e plantador ocasional de maconha.
Uma noite, voltava de um show quando percebeu que a constelação de Órion estava no lugar errado no céu. Steltzner se recordava vagamente de alguma coisa sobre movimento diurno --aquele descrito pelas estrelas em relação à rotação da Terra. Mas nunca tinha feito um curso de astronomia e, no colégio, fora reprovado por faltas em matemática.
Seus pais não davam grande valor ao ensino formal. O pai era herdeiro de uma marca de condimentos, um homem talentoso e problemático que nunca conseguira seguir um rumo profissional e se afundara lentamente na bebida. Sua mãe foi cofundadora de uma creche hippie e ensinou Adam a fumar maconha. A família vivia em esplendor boêmio entre os artistas e músicos de Sausalito.
Naquela noite em Mill Valley, quando Steltzner olhou para Órion e se perguntou por que a constelação tinha mudado de lugar, havia poucas razões para supor que encontraria a resposta. Ele não tinha demonstrado nenhum potencial intelectual desde os sete anos, quando o vigário de sua escola paroquial o declarou pouco inteligente e aconselhou seu pai a encaminhá-lo para uma escola profissionalizante.
Algumas semanas depois de fitar as estrelas, decidiu se matricular no curso de astronomia da faculdade pública local. Ao saber que antes teria que estudar física, concordou a contragosto. Mas logo descobriu que levava jeito para a coisa. Mais do que jeito, na verdade. "Fui dominado por aquilo", ele me contou. "Havia provas em que a nota média era 30, e eu alcançava 98. Eu era o cara."
Steltzner conquistou um diploma de bacharel em engenharia mecânica na Universidade da Califórnia em Davis e foi orador na cerimônia de formatura. Ganhou uma bolsa para o mestrado no Caltech (California Institute of Technology) e depois acompanhou sua primeira mulher à Universidade de Wisconsin para o doutorado. Chegou ao JPL em 1999.
SUPERLATIVO
Durante algum tempo após a missão Mariner 4, os astrônomos tinham ficado mais otimistas em relação ao planeta. Era um deserto, sim. Mas não tão inóspito quanto se supusera inicialmente. A nave tinha fotografado menos de 1% da superfície, e as missões seguintes só conseguiram passar ao largo do planeta.
Foi apenas em 1971, quando o Mariner 9 entrou na órbita de Marte, que os cientistas puderam olhar o planeta melhor e por mais tempo. A nave sobrevoou a superfície a menos de 1.600 quilômetros de altitude --seis vezes mais perto do que a Mariner 4 tinha feito--, munida do que à época se definia como uma câmera de alta resolução: um pixel por cada cem metros. Em pouco menos de um ano, transmitiu mais de 7.000 imagens.
O mínimo que se podia dizer era que Marte era espetacular. Grandes erupções tinham moldado o planeta, e grandes tempestades de areia o tinham "lixado". Havia chapadas, campos de gelo e oceanos de dunas. O planeta tinha um vale formado por falha tectônica que era quatro vezes mais fundo do que o Grand Canyon e uma montanha três vezes mais alta do que o Everest. Era superlativo.
Quatro anos mais tarde, quando a Nasa enviou duas naves à superfície marciana --a Viking 1 ao equador e a Viking 2 ao polo Norte--, seus cientistas já não tinham esperança de encontrar vida inteligente. Mas estavam à procura de mais do que simplesmente imagens. Os dois veículos de pouso tinham braços mecânicos, para colher amostras do solo, e eram equipados com laboratórios, para verificar a presença de atividade biológica.
O Viking 1 deveria pousar em Marte no dia 4 de julho de 1976, bicentenário dos Estados Unidos. As coisas não saíram bem como se previa. Vistos a partir das naves em órbita, os locais de pouso eram tão acidentados que elas passaram semanas vasculhando a superfície em busca de pontos alternativos.
Quando finalmente pousaram, a festa do bicentenário já tinha acabado. O Viking 1 acabou aterrissando num campo de escombros vulcânicos, e o Viking 2, na Utopia de Schiaparelli, lugar tão árido quanto uma pista de bocha.
A atmosfera era cem vezes mais fina do que a da Terra, e a temperatura ao amanhecer era de 83 graus negativos. Mesmo assim, quando chegaram os resultados dos primeiros testes de amostras de solo, a Nasa comemorou. Quando misturadas com nutrientes radiativos, duas das amostras emitiram dióxido de carbono radiativo --sinal de que os nutrientes tinham sido metabolizados.
Alguns cientistas ainda defendem esses resultados: dizem que o solo pode ter contido micróbios vivendo no gelo abaixo da superfície. Mas as sondas não encontraram outros sinais de atividade biológica nem compostos orgânicos. Na realidade, o solo parecia ser inimigo da vida: seu teor de ferro era tão alto que qualquer sopro de oxigênio rapidamente formava ferrugem. O planeta tinha uma razão, afinal, para ser vermelho.
Os cientistas entenderam que, mesmo que houvesse vida ali, seria dificílimo encontrá-la. Por isso, não voltaram a visitar a superfície por 20 anos. A Nasa finalmente retornou a Marte em 1997, com a cápsula de pouso Pathfinder e a sonda Sojourner (que encontraram principalmente rochas).
Em 2000, quando Steltzner começou a trabalhar com Tommaso Rivellini, um dos engenheiros que projetaram a Pathfinder, a Nasa tinha apenas duas sondas robóticas pequenas em desenvolvimento: a Spirit e a Opportunity. Se a Viking representou um tento técnico e uma decepção científica, a Spirit e a Opportunity foram o inverso.
Seu sistema de pouso, inspirado no do Pathfinder, era quase risivelmente simples: consistia de sondas envolvidas em airbags. Quando as duas naves chegaram a Marte, no inverno de 2004, suas cápsulas desceram em paraquedas e então deixaram as sondas cair sobre a superfície, como bolas de praia.
"Eu achei que encontraríamos o que sempre tínhamos achado: um monte de basalto", disse-me John Grotzinger, geólogo do Caltech que assessorou o projeto e hoje é cientista-chefe da missão Curiosity. "E foi mais ou menos isso mesmo. Mas então a Opportunity pousou. Quando as primeiras fotos chegaram, dissemos, brincando, que a Nasa devia estar nos mandando imagens do Oeste dos Estados Unidos. Então os dados mineralógicos começaram a chegar, e dissemos 'não pode ser!'."
Steltzner e Grotzinger cumprem papéis complementares no programa de Marte: o primeiro procura definir como vamos chegar lá, enquanto o outro tenta prever o que vamos encontrar. Especialista em geobiologia, Grotzinger tem 55 anos, e os longos meses de solidão e a céu aberto lhe conferiram uma aparência magra e rija e um estilo lacônico raro entre os agitados engenheiros da Nasa.
GEOANATOMIA
No final do outono, durante um período raro de calmaria em seu trabalho no programa de Marte, ele e eu fizemos um passeio de carro até o Vale da Morte (ao norte do deserto de Mojave, na Califórnia). Ele costuma levar seus alunos de geologia até lá para uma escola de campo dirigida pelo Caltech. Diz que as escarpas e os afloramentos da região são como uma aula de anatomia terrestre --são os músculos e ossos do planeta "descascados" e expostos ao sol dissecante. É o que a América do Norte tem que mais se aproxima de uma paisagem marciana.
Quando se está na extremidade sul do Vale da Morte, é fácil tomá-la pela cratera Gale, o destino do Curiosity em Marte. Uma orla de rocha pontiaguda bordeja o horizonte; suas laterais erodidas descem até a planície aluvial muito abaixo. Sabe-se que a temperatura ali já chegou a quase 55 graus, e a precipitação pluviométrica não bate os 50 milímetros por ano. Mas foi em lugares como este que estudiosos encontraram os sinais de vida mais antigos.
Hoje os biólogos pensam que as cianobactérias, que produzem oxigênio através da fotossíntese, provavelmente surgiram cerca de 2,7 bilhões de anos atrás, mas o Grande Evento de Oxigenação da Terra só começou quase meio bilhão de anos mais tarde. Nesse ínterim formou-se a maioria dos grandes depósitos de ferro da Terra. Os oceanos primordiais deviam ser cheios de ferro solúvel. À medida que as bactérias produziam oxigênio, os dois compostos reagiam para formar óxido de ferro, que se precipitou sobre o leito do mar em grandes camadas de ferrugem.
Quando o ferro dos oceanos se esgotou, o oxigênio ficou livre para acumular-se no ar. Foi então que a Terra de fato ganhou vida.
Mas por que não em Marte? As areias vermelhas desse planeta também são repletas de ferro que, ao contato com o oxigênio atmosférico, converte-se em ferrugem. Em algum ponto nessa trajetória, o planeta ficou sem ar. Notavelmente semelhante à Terra no passado, Marte tornara-se um lugar absolutamente estranho a nós.
Por isso foram tão surpreendentes as imagens enviadas pelo Opportunity nove anos atrás. Em vez de um deserto de cascalho, mostraram afloramentos rochosos acidentados; no lugar de basalto escuro, sedimentos claros. Não era um fluxo de lava. Parecia solo trazido pelos ventos a partir do leito de um lago --lugar que tinha mais probabilidades de abrigar vida e guardar resquícios dela.
O Opportunity vem percorrendo Marte desde então, apesar de ter sido projetado para cumprir apenas uma missão de 90 dias. Nunca descobriu o tal leito de lago nem qualquer espécie de matéria orgânica. Mas, em conjunto com um par de satélites de vida igualmente longa --o Mars Odyssey e o Mars Reconnaissance Orbiter, lançados em 2001 e 2005, respectivamente--, foi restaurando a reputação técnica da Nasa.
O passo seguinte seria enviar a Marte um laboratório móvel em escala plena. Desta vez a equipe de Steltzner teria carta branca para a criação do sistema de pouso.
Graças a seus dois satélites novos, a Nasa já era capaz de identificar na superfície marciana tipos de solo, a presença de gelo de água e gelo seco nos polos e até mesmo traços de água no subsolo. Isso abriu dezenas de novos sítios promissores para a missão. O problema era pousar neles.
SUV
Alguns eram cobertos de pedras grandes, outros, de torres de arenito, e ainda outros ficavam no topo de cânions íngremes. Por mais certeira que possa ser uma nave espacial da Nasa, os locais de pouso só tinham precisão de até 3.900 km². Os airbags diminuíam um pouco a incerteza: fariam a sonda quicar de qualquer obstáculo com que pudesse colidir. Mas o novo jipe-robô seria cinco vezes maior do que seus predecessores --um SUV, enquanto aqueles eram carrinhos de golfe.
A maneira tradicional de pousar naves espaciais grandes é dotá-las de pernas compridas e propulsores potentes. As sondas com pernas, porém, tendem a se desequilibrar com facilidade. A equipe encontrou a solução numa manhã abafada de setembro de 2003, durante uma maratona no JPL: um "jipão pendurado numa corda".
A ideia era abaixar até o chão um jipe sustentado por cabos, mantendo a cápsula de pouso presa a seu paraquedas. O conceito tinha sido considerado difícil demais: o jipe balançaria como um pêndulo enquanto estivesse voando, e seu radar era impreciso demais para encontrar um local seguro para o pouso.
Mas a equipe de orientação e navegação tinha remodelado os propulsores para deixar a cápsula de pouso (a chamada Sky Crane) mais manobrável; o radar dela havia sido aprimorado, e um novo software poderia estabilizar qualquer coisa que estivesse balançando debaixo dela.
Como a cápsula de pouso agora era muito mais manobrável, poderia mirar uma área muito menor --em torno de 120 km²-- e evitar a maioria dos obstáculos dentro dela. Poderia fazer pousar sondas pequenas ou grandes, em terrenos planos ou íngremes e sob condições climáticas de qualquer tipo.
A manhã do pouso começou ensolarada e clara no sul da Califórnia e também no planeta ao lado. O Curiosity aterrissaria em Marte numa estação incerta, quando o planeta aproximava-se do Sol, agitando seu clima já volátil. A atmosfera marciana está em movimento constante: entre a superfície e 1,80 m acima dela, podem ocorrer variações de temperatura de até cerca de 15,5 graus. O ar é tão fino que o primeiro brilho do Sol pode colocá-lo em convecção violenta.
Felizmente, o jipe-robô foi construído para resistir a ventos marcianos, e o local escolhido para o pouso estava livre de tempestades de poeira, pelo menos até ali. A cratera Gale fica logo ao sul do equador, perto do equivalente marciano ao norte da Austrália. Tinha menos chances de conter resquícios orgânicos do que outros pontos, mas era certo que seria geologicamente fascinante.
Num primeiro momento, Grotzinger pensava nela apenas como pista de pouso. Mas, dois meses antes da aterrissagem, decidiu olhá-la mais atentamente. Era grande demais (145 km de diâmetro) para ser estudada detalhadamente por sua equipe. Por isso, Grotzinger definiu uma área de 388 km² em torno do ponto de pouso e a dividiu em quadrângulos. Em seguida, postou os dados on-line, para que qualquer geólogo pudesse fazer o mapeamento.
Quando os resultados chegaram, Grotzinger enxergou padrões que não notara antes. Por exemplo, havia um cone aluvial na base da montanha que tinha alguns dos mesmos sedimentos observados em Eberswalde, um dos pontos descartados para pouso. Se os cientistas tivessem sorte, ele pensava agora, Gale poderia ter o melhor dos dois mundos: uma cratera possivelmente habitável no passado e uma montanha que poderia explicar por que ela deixou de sê-lo. Mas primeiro eles teriam que chegar lá.
20h26: a sala de controle é fechada. Nas duas horas seguintes, ninguém deixará o lugar enquanto a sonda não pousar. Quando a equipe de Steltzner se acomoda, uma voz maliciosa é ouvida pelo alto-falante: "Why begin, then cry for something that might have been?" É Frank Sinatra interpretando "All or Nothing at All".
A exploração espacial é ciência; os pousos, teatro. A equipe de Steltzner monitoraria cada segundo da descida, mas o pouso não seria um evento ao vivo. Os sinais do Curiosity levariam 14 minutos para percorrer os 250 milhões de quilômetros até a Terra.
22h24: 130 quilômetros acima da superfície de Marte, a cápsula de pouso mergulha na atmosfera. Com seu formato de pião, ela se movimenta a mais de 21 mil km/h. Enquanto cai, ejeta dois lastros de tungstênio que a puxam para trás para criar força de ascensão. Agora a cápsula forma curvas em S no céu, guiada por quatro pares de propulsores.
Sete minutos de terror: é como Steltzner e sua equipe gostam de descrever a descida a Marte. Entre o momento de ingressar na atmosfera e o pouso no planeta, a cápsula tinha sete minutos para alcançar a cratera Gale, encontrar área vazia e depositar ali a sonda.
22h26: o atrito do ar marciano, que se espessava em volta da cápsula de pouso, eleva a temperatura dela para quase 1.650 graus. Um escudo contra o calor que recobre o fundo da cápsula, feito de carbono fenólico, incinera-se ao cair.
ESPAÇO-TEMPO
Na noite anterior, Steltzner tinha dormido melhor do que em qualquer outra dos dois últimos anos. Agora o Curiosity estava por conta própria, e ele tinha feito o que podia. O resto ficaria a cargo do espaço-tempo.
22h29: 11 quilômetros acima de Marte, o paraquedas supersônico se abre, arrancando a cápsula para trás. Com 15,8 metros de largura e 48,8 de comprimento, ele pode gerar resistência de cerca de 29,5 toneladas. Em um minuto, ele faz a cápsula desacelerar de quase 1.448 km/k para menos de 322.
A atmosfera marciana é o pesadelo de um cientista de foguetes: espessa o suficiente para fazer uma nave espacial se consumir em fogo, mas fina demais para impedi-la. Apenas propulsores poderiam desacelerar a cápsula de pouso para sua velocidade-alvo de 2,7 km/h. Mas, se eles chegassem perto demais do chão, levantariam uma nuvem de poeira que recairia sobre o jipe e sufocaria seus equipamentos. Por isso o guindaste celeste foi criado.
22h31: o escudo anticalor foi descartado, o paraquedas, cortado, os propulsores do guindaste, ativados. A menos de um 1,6 km da cratera, ele varre a superfície com radares e inicia a descida: 160 quilômetros por hora, 80, 32. Quando está a cerca de 18 metros do chão, os cabos em sua parte inferior se desenrolam e baixam o jipe para a superfície de Marte.
Com a equipe prestes a explodir à sua volta, Steltzner aguardou uma confirmação tripla. "Tango delta nominal", um engenheiro gritou: o jipe transmitira localização final e velocidade (zero). "RIMU estável", disse outro engenheiro: os navegadores de inércia estavam em posição de parada completa. Um terceiro deveria então iniciar uma contagem regressiva silenciosa para assegurar que o jipe permanecesse em contato e que o guindaste não caísse em cima dele.
Mas, no fundo da sala de controle, um membro da equipe, Jonathan Grinblat, não se conteve. E então a equipe inteira estava em pé, fazendo tanto barulho que quase não se ouviu a frase final: "Aterrissagem confirmada. Estamos em segurança em Marte".
Para a maioria dos engenheiros anônimos que trabalharam no projeto, tratou-se de um momento agridoce. O pouso foi um sucesso total, mas os tinha deixado sem emprego. O orçamento da Nasa depende de verbas federais e, pela primeira vez em uma década, não havia dinheiro para ir a Marte: uma missão para trazer amostras à Terra, programada originalmente para 2016, fora cancelada após a crise financeira.
Poucos meses após o pouso do Curiosity, no entanto, duas novas missões foram aprovadas: uma nave estacionária, com lançamento previsto para dali a três anos, e uma sonda móvel programada para quatro anos depois.
A equipe que criou o guindaste celeste se desfez. Steltzner percebeu que isso aconteceria. Na noite do pouso, voltou para casa cedo e foi para a cama. Abraçou sua mulher grávida e chorou.
Quando o vi novamente, em novembro, ele já tinha uma filha bebê. Olive nasceu sob uma lua azul, três semanas após o pouso em Marte. Pouco tempo antes, ele havia sido nomeado diretor do novo setor de Entrada, Descida, Pouso e Acesso de Unidades Pequenas do JPL, mas estava tendo dificuldade em se concentrar. "Quando você passa anos sob estresse constante, é difícil lidar com a ausência dele", explicou. "É como se eu agora estivesse recebendo adrenalina em doses baixas. Como faço para elevar a dose, para conseguir me concentrar?"
NÉVOA
Os primeiros testes de ar e solo empreendidos pelo Curiosity revelaram fortes traços de metano, normalmente produzido por seres vivos. Mas quando os instrumentos foram enxaguados e novas amostras foram testadas, ele quase desapareceu; era só um contaminante trazido da Terra.
O jipe-robô mal tinha se movido, e os analistas da Nasa já estavam sobrecarregados: 10 mil testes até meados de novembro. 
A névoa de dados deixou uma coisa clara, porém: a viagem teria valido a pena, nem que fosse só pela cratera. Em outubro, o Curiosity detectara traços de cálcio, frequentemente associado à água; em novembro, um leito de riacho. Pouco antes do Natal, dirigiu-se a uma área que a equipe chamou de baía Yellowknife.
Nas imagens do satélite termal, o solo dela parecia conservar o calor de modo incomum --sinal de que poderia conter argila ou outros minerais hidratados. Quando a terra vermelha deu lugar à cinzenta e ao que parecia uma linha costeira, veios de um mineral branco e poeirento surgiram no chão. Assim que o robô escaneou o pó, descobriu-se que era gipsita, mineral que tende a formar-se em corpos de água. Em março, já não havia dúvidas: o Curiosity tinha encontrado um leito de lago.
Grotzinger crê que, no passado, a baía tenha contido água doce; teria sido alimentada por riachos que desciam da beira da cratera e desaguavam mais abaixo.
O leito do lago é formado por uma lamita fina, rica em argila. Quando o robô colheu uma amostra e a aqueceu em seu laboratório de bordo, encontrou traços de carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo e enxofre --os componentes básicos da vida. Igualmente promissora foi a presença de sulfatos e sulfetos, que micróbios consomem como fonte de energia. Grotzinger compara esses minerais a baterias: compostos positiva e negativamente carregados que, juntos, podem desencadear o início da vida. A baía se configurava, portanto, como o primeiro local verdadeiramente habitável fora da Terra.
Seis milhas a leste de Yellowknife fica o monte Sharp, um livro-código da geologia marciana, com 5,6 km de altitude, sem sinais de dobras, falhas ou placas tectônicas. Grotzinger sabia, graças a imagens de satélite, que havia uma camada de hematita vermelha perto do fundo, uma de cerca de 48,8 metros de argila acima dela e então uma de sulfatos por cima. As três são associadas à água e podem conter resquícios orgânicos.
Mas o elemento mais interessante da montanha fica a uma altitude muito maior --cerca de 701 metros. Ali, sedimentos variegados da antiguidade marciana davam lugar a camadas idênticas de rocha marrom. Abaixo dessa linha, o planeta teve água líquida no passado; acima, apenas poeira.
"Pode ser que levemos dois anos para nos arrastarmos até o alto", disse Grotzinger. "Mas espero que um dia atravessemos essa separação, e que do outro lado tenha ocorrido a Grande Evento de Ressecação, e que encontremos evidências geoquímicas dela, quer a água tenha penetrado sob a superfície, se acumulado nos polos ou escapado para o espaço."

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